segunda-feira, 16 de março de 2009

Doces Lunáticos
J. Carino

Ontem, uma lua rotunda e altaneira passeava sua altivez astronômica na noite do Rio. Estava linda essa jóia de prata no estojo de negrume do céu. Mas quem a via?
Não a via o executivo apressado, doido para jogar longe o paletó, afrouxar a gravata e afogar em uísque e alienação televisiva o restinho de um dia cansativo. Nem a gatinha malhadora, que preferia arriscar uma olhada provocativa ao seu vizinho de aparelho ergométrico, a olhar o céu pela janela escancarada à sua frente na academia.
A lua não era vista pelo motorista de ônibus, embrutecido pelo trabalho estafante ao lado de um motor barulhento e quentíssimo, com as canelas à mostra, palito na boca e uma flanela por dentro da gola da camisa aberta no peito.
Não via a lua a velhinha carinhosa com seu cão e insensível em face do mendigo deitado na calçada, pertinho de onde o lulu deposita o produto de necessidades fisiológicas que vão acabar passeando nas solas dos sapatos de transeuntes distraídos.
O menino que faz de sua bicicleta um bólido que serpenteia entre os pedestres na calçada e, milagrosamente, não atinge ninguém, também não vê a lua plena. Nem a menina de rabo de cavalo e narizinho empinado, que refaz o eterno caminho feminino entre a garota e a mulher.
No fundo negro da noite, lá ia a lua, imensa, generosamente prateando tudo. Quem a via?
Talvez a visse o gato vagabundo, fugido do falso aconchego de algum lar humano; ou o bêbado largadão, que poderia ver duas luas, compensando a ausência de atenção dos sóbrios que não viam nenhuma; ou aquele porteiro de prédio modesto, com o olhar vago em que havia, ainda, o brilho intenso de uma luz da lua vista na caatinga ressequida da terra natal, antes da viagem com jeito de para sempre num pau-de-arara.
O garçon do restaurante da esquina, equilibrando bandejas em meio à conversa fiada da gente de pilequinho e a fumaça de muitos cigarros na certa não a via; muito menos a PM, capaz de realizar o já grande milagre de ser e parecer feminina e graciosa dentro de sua farda sem graça.
O gari num horroroso uniforme cor-de-abóbora, que junta folhas, metodica e caprichosamente, como o banqueiro junta dinheiro, talvez visse a lua redonda e linda. Mas o pastor, que sobraçava a Bíblia enquanto andava apressado em direção à sua igreja - afoito para resgatar almas e garantir dízimos - com certeza não a via.
Ah, lua, lua, prateada amiga, eu a vejo criando essa senda de luz por sobre o mar - caminho quase irresistível na direção do horizonte. Vejo-a refletida em olhos marejados de amantes abandonados; na gota de orvalho que, miraculosamente, se equilibra na borda rendada da folha no jardim; na lágrima de peregrina beleza que rola por sulcos cavados pelo sofrimento numa face envelhecida.
Poder vê-la, lua de prata, é um privilégio; banhar-se em sua branca luz é uma necessidade dos que amam; sabê-la no céu, atravessando magestosa o imenso caminho no espaço sem fim, alheia à indiferença, é ter a certeza da onipresença da beleza, da perpetuação do sublime, da garantia de um milagre iluminador do mundo e, quem sabe, até das mais escuras profundezas da alma humana.
Lua, lua, nem todos podem vê-la assim, linda donzela na festa celeste do plenilúnio.
Os que a vemos continuaremos a seguir assim, loucos e banhados de luar, com os pés na terra e a alma na amplidão - doces e felizes lunáticos.

sexta-feira, 13 de março de 2009

O Amor de Tamisa
Graça Carpes

Pensava em seus amores: o último que teve, quando o teve...
Depois, deixou-se estar só.
Também, havia o céu que a cada dia trazia um novo tom, uma luz outra... Reflexos bordando nuvens.
Gostava de estar só.
Espaçosa que era sua alma exigia-lhe livres vôos.
Lembrou de Lauro, foi o último de seus... Foi? Já nem lembrava mais.
Depois... Depois...
Depois de Lauro, o mundo caiu.
Recolheu todas as possibilidades.
Trancou todas as saudades.
Ancorou o barco e permaneceu a ouvir o embalo noturno das ondas.
De Lauro, lembrava que havia uma janela em direção à colina. E entre a janela e o sol, o vai-e-vem de nuvens a refletir os dias.
Até que foi bom, enquanto havia intensidade.
Gostava do cheiro do quarto... Gostava de quando sentados na cama e quase sem nada a falarem, seus olhos vermelhos se encontravam e aí sim... Ardia! Pele aderia pele!
Cada pessoa é um porto, sabia. Quando atracamos, até que acalme a maré, toma conta uma certa magia em direção norte, em direção sul... E nada se acomoda.
Há sempre movimento, ebulição. Quando estanca é a hora da partida.
E aí... Ai, como dói cerrar a porta, assinar a tela, expirar!
Arrumou suas malas no prazo de uma semana.
Os livros.
Material de pintura.
Telas sem chassi.
Pincéis, máscaras, esculturas...
Três calcinhas: uma preta, uma rosa e uma branca.
Dois pares de sandálias.
Uma saia longa.
Três sutiãs.
Duas camisetas... Era tudo!
Também, quase não usava roupas quando moravam juntos. Pareciam adeptos ao naturismo. Ao naturalismo. Ao Dionísio...
Brindavam suas taças lua à dentro, sol a sol...
Em outras horas, cores emergiam das extremidades dos dedos de Tamisa.
E aí...
Era um deus nos acuda.
Horas, dias...
Acrílicas, terebintinas, azuis, laranjas, ocres, sienas...
E Lauro esbravejava, espumava, explodia.
Batia panelas, portas, quebrava armários.
Insaciado, explodia demônios. Desarrolhava o gênio do mal.
Um dia virou a mesa ¿(a de desenho): o impulsionado vôo dos nanquins! E o canson importado hemorragiu, expirou ante o olhar de Tamisa.
Dos olhos de Lauro saltavam labaredas, Odins ensandecidos.
Dos olhos caídos de Tamisa... Nada!
Recebeu seu ultimato:
- Rua do meu quarto! Seus olhos não são meus olhos. Quatro noites.
Quatro dias. Não come, não dorme, não me acaricia...
Chega... menina!
Menina chega!
Sabia da densidade dos dias.
Era maio.
Estava agora diante da jaula cercada de tela que cercava a arara colorida, que de asas cortadas e olhos caídos e silenciosa, pagava pelo crime de ser bela.
Fotografou a aprisionada.
Registrou em seu olhar o pedido de socorro da fêmea abatida.
Guardou as mãos nos bolsos. Fazia frio na tarde.
A cor de um céu outonal gemia o gozo do entardecer.
O corpo arrepiou.
Às vezes lhe fazia falta estar em estado de amor.

quinta-feira, 12 de março de 2009

ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
Mary Farias


E se eu te dissesse que esqueci desse mar aberto de dentro de mim? Que só olho pra fora, pras coisas? Que desaprendi irreversivelmente a gostar da solidão? Que eu não me basto? Que nadei pra terra, não quis mais me afogar? Que eu me viciei no auto-boicote, que eu não sei parar, nunca? Que eu só preciso de uma, veja bem, só uma grande idéia? E que talvez ela nem precise ser grande, mas que seja dessas que ninguém ainda teve, sabe? Eu quero uma idéia que ainda não é idéia, ainda não é nada.

E se eu te perguntasse por que meu mar fica cada vez maior toda vez que vejo essa gente? E por que quase todo mundo não passa de lago pequeno e cheio de lodo por dentro? Às vezes até por fora, olhando bem, consigo ver um pouco de lama em seus olhos. Eu vejo tanta lama no mundo.

E o que preenche um mar, sabe me dizer? O que vence a pressão e chega bem lá no fundo? Quem tem fôlego pra mergulhar assim? Pra onde é que foram os submarinos? Cadê as coisas à prova d’água? E as pessoas? Cadê a água? Só vejo o lodo saindo dos olhos e das garras.

E se eu te contasse que nada sei de rios, mares e lagos? Que o lodo é exterior, mas é o que mais compreendo? Que de compreender tanto tenho medo que se torne algo de mim? Que eu não sei o que fazer, vezenquando, com tanta água? Que às vezes quase mato afogado quem não pediu uma gota sequer? Que essa água me escapa, em muitas e muitas horas, e escorrega pelos olhos sem parar? Já transbordei tanto...

E se te confessasse que tenho este mar em mim desde sempre e ainda não aprendi a navegar?

quarta-feira, 11 de março de 2009

Metamorfose
Maria Carolina Gesuele

Foi numa daquelas épocas de férias, que a gente passa o mês inteiro na casa da avó e faz uma porção de descobertas...Foi naquele mês que descobri, em meio a cheiro de bolo no forno e fruta colhida no pé, que eu finalmente estava virando “mocinha”.
Descobri que minha avó já não dormia mais na mesma cama com o meu avô.Descobri que aquele cheiro amargo que eu sentia quando sentava no colo dele, era de um talco de enxofre que ele passava após o banho.Descobri que minha avó nunca suportou aquele cheiro, mas mesmo assim, ele continuava usando.
Descobri um casulo grudado na maior árvore do quintal e todas as tardes, quando o sol estava se pondo, eu deitava no chão e perdia a noção do tempo observando aquela metamorfose.
Descobri porque aquela minha tia solteirona, que nunca fez questão de sair da casa dos meus avós, não saia da casa da vizinha, também solteirona.
Descobri que era do coentro aquele gosto estranho que eu sentia quando comia o peixe que vovó fazia.Mas mesmo assim eu continuava comendo, para não deixa-la triste.
Descobri que, todas as noites, quando minha avó pegava o terço e ia deitar, na verdade não passava a noite inteira rezando como eu imaginava.Na primeira “Ave Maria” ela caia no sono.E na manhã seguinte ainda dizia: “Não dormi nada essa noite!”.
Descobri que meu avô, proibido de comer sal por causa da pressão alta, tinha um queijo escondido em seu guarda roupa e ainda tomava uma pinguinha na mercearia do seu João Almeida.
Descobri que minha mãe foi apaixonada pelo careca do supermercado, mas a Rosângela, sua melhor amiga, acabou se casando com ele.
Descobri que era uma delícia tomar uns bons goles de vinho tinto e sentir aquele calor gostoso pelo corpo.
Descobri que, com todos os defeitos e qualidades, eu amava meus avós mais do que nunca.
E naquela tarde, quando finalmente a borboleta saiu do casulo, descobri que minha calcinha estava suja de sangue.

terça-feira, 10 de março de 2009

Alexandres da minha vida

Acabo de perceber que, num milagre da multiplicação das tretas, eu tenho nada mais nada menos que 10 Alexandres na minha lista de contatos do MSN. 10! Haja Alexandre. Ainda bem.
Com todos eles eu tenho uma história diferente, seja porque é meu amigo desde o primário, ou porque conheci via net e se tornou confidente, seja porque era amigo do amigo do amigo ou um conhecido que se tornou algo mais ou não. Não importa.
Tenho Alexandres orientais,ocidentais,administradores de empresa,engenheiros, jornalistas, escritores.
Tenho Alexandres altos, baixos, magrinhos, gordinhos, morenos e loiros.
Tenho Alexandres falantes e calados.
Tenho Alexandres amigos, amantes, irmãos.
Tenho Alexandres meigos, ácidos, pacificadores e arrumadores de encrenca.
Tenho Alexandres que são Alê, Conê, Alex, Ina e só Lê.
Tenho Alexandres que já tive nos braços, outros que já tive no colo, outros que me cederam o ombro, os ouvidos, a cabeça.
Tenho Alexandres com quem falo todos os dias, Alexandres que estão longe e Alexandres que estão perto.
Tenho Alexandres de 33, de 37, de 40 e de 20 anos.
Tenho Alexandres de horas boas e de horas ruins.
Tenho Alexandres que tenho medo de procurar porque não sei o que dizer e Alexandres que eu não preciso dizer nada.
Tenho Alexandres sedutores, simpáticos, normais e malucos.
Tenho Alexandres que gostam de rock, de MPB, de música clássica e de jazz.
Tenho Alexandres baladeiros e caseiros.
Tenho Alexandres que amam carros, motos, livros e circo.
Tenho Alexandres que me amam como sou, Alexandres que querem me mudar, Alexandres que me intrigam, Alexandres que me fazem rir, Alexandres que me fazem refletir.
Tenho Alexandres nos quais eu não consigo parar de pensar e outros que eu faço um esforço pra esquecer.
Tenho Alexandres que sabem tudo de mim e Alexandres que pensam que sabem.
Mas uma coisa é certa: TODOS os meus Alexandres deixaram marcas indeléveis no meu corpo, na minha alma e na minha vida. Por isso são todos muito amados e lembrados sempre com carinho.
Um beijo a todos os meus Alês.